sexta-feira, 12 de março de 2010

Contra Todos



O mais controverso personagem do futebol, Richarlyson fala o que pensa, aguenta as consequências por agir como bem entende e não se esforça para agradar aos detratores

Uma entrevista com o meia são-paulino Richarlyson Barbosa Felisbino, temente ao direito divino, mas canhoto de natureza, 1,76 metro de altura, presumíveis 73 quilos, 28 anos de idade e o craque mais pop do Brasil, é anterior a si mesma. Começa dois meses antes. Afinal os assessores a rodeá-lo, escaldados pela onipresença da mídia, converteram-se em uns retrospectivos vocacionais. Acham que, em um primeiro momento, Ricky poderia falar demais - para depois falar demais, mais uma vez. E, refletem eles, talvez Ricky jamais tenha falado demais: é que o seu destino sempre foi nivelado com uma mídia que não se compraz jamais com a personalidade forte do jogador - que, à guisa de código de comportamento personalíssimo, faz o que lhe der na veneta. É um gatilho fácil quando se trata de vindicar sua própria liberdade.

"Tenho medo porque a mídia pode enforcar Ricky com suas próprias palavras. Eu voto para que ele não fale", vaticinou, em uma das primeiras conversas, um dos interlocutores a ele próximos. Assessores do São Paulo Futebol Clube celerados, assessor pessoal idem, é necessário, após quase 60 dias de conversa (nem sempre mole), chegar ao famoso ora bolas. E, quando a reportagem arria as orelhas, eis que Ricky resolve falar.

Veja você que a história de vida de Ricky também é anterior a si mesma. Porque seu pai, o craque Lela, hoje aos 48 anos e nascido Reinaldo Filisbino, sempre foi seu grande inspirador. E para quem, a todo final de jogo, Richarlyson telefona, pedindo opiniões, terçando argumentos ou vindicando uma opinião mais forte quando está sem opções outras. Em uma época melhor, em que a vida pessoal de um atleta não rendia tantos sururus, Seu Lela começou a jogar futebol, aos 15 anos de idade. Aos 17, já era craque profissional do Noroeste de Bauru, no interior de São Paulo. Foi costeando a carreira aos poucos, e chegou a jogar em todas as categorias de base da seleção brasileira. Sem outra intenção que não a de se tornar uma referência (e foi), Seu Lela cravou as chuteiras em 12 grandes clubes, como o Coritiba (PR), o Fluminense (RJ), a Inter de Limeira e o Santo André (ambos de São Paulo). Há dez anos, Seu Lela treina a categoria A-3 do Atlético de Araçatuba (SP). Ricky tinha razões, em catadupas, para se inspirar no pai. E o seu futebol obviamente nasceu de trazer tudo o que o pai havia feito para o patamar que quisesse. Seu Lela, nesse ponto, sabe que Richarlyson ter se tornado um craque era questão de favas contadas. E ressalta uma novidade: Ricky era tão bom nas suas assertivas com o esporte que poderia muito bem ter se tornado o que quisesse. "Desde pequeno, ele era bom em tudo", relembra o pai. "Nunca vi uma pessoa tão decidida. Sempre quis ser o melhor em tudo. Entra de cabeça em tudo, desde moleque. Foi uma criança muito esperta, antes do futebol, no basquete e no vôlei." E Seu Lela não é homem sujeito a arroubos demolidores, nem a surtos idem de lamber a cria. Fala baixo, contido. Sonha, é óbvio, em ver Richarlyson na seleção brasileira. Mas expressa isso com simplicidade de monge e um quê de paciência de charreteiro. Afinal, Richarlyson sempre consegue o que quer, e o exemplo do pai sempre é calcado em uma cena que ambos guardam no relicário de imagens familiares. "Corria o ano de 1985. Eu jogava no Coritiba, que estava empatando com o Santos, 1 a 1. Lá no Rio de Janeiro, o Fluminense ganhava do Bahia de 3 a 1. Com esse resultado, nós seríamos desclassificados. Mas, aos 42 minutos do segundo tempo, eu marquei, ficamos em 2 a 1, e isso nos classificou para a semifinal. O Richarlyson foi criado nesse espírito de luta, de vitória, de incentivo", jacta-se Seu Lela, que ao encerrar a carreira contabilizava 100 gols feitos.

Richarlyson, pelo relato do pai, teve uma infância tão tranquila quanto a sua ou a minha, sem fabulosos méritos, nem arroubos, nem aquelas crônicas que fazem pedras de crack chorar. "Ele sempre foi tranquilo, mas eu te digo que ele é basicamente um evangélico, sempre vive dizendo que seu futuro e sua vida pertencem a Deus, e o que Deus fizer com sua vida estará muito benfeito", revela Seu Lela. "Nossas conversas são também sobre o fato de o futebol hoje ter virado futebol-força, em que o atleta tem mais desgaste físico do que nunca. Digo pra ele que isso pesa muito contra o atleta, mas sei que ele, do jeito que é dedicado, vai jogar até os 40 anos e brilhar muito na seleção", refere o pai.

Vejamos por exemplo os números de Richarlyson no Campeonato Brasileiro, de 2003 a 2009: participou de 137 jogos, 71 vitórias, 38 empates, 28 derrotas e cravou sete gols. Começou a carreira no Ituano, onde ficou de 1998 a 2001. De 2002 a 2005, passou pelo Santo André, com nove gols em 33 atuações. No Fortaleza, entre 2003 e 2005, foram dois gols em 27 partidas. Mais quatro gols no Salzburg, da Áustria, de onde voltou para o São Paulo. Esteve por duas vezes vestindo a camisa da seleção brasileira. Quando completou 100 jogos pelo São Paulo, foi homenageado pelo clube, ganhando uma camisa com o número 100 e atuando a partida com seu apelido 'Ricky' na camisa 20. Em 23 de janeiro de 2010, em uma partida do Campeonato Paulista, contra o Rio Claro, Ricky completou 200 jogos com a camisa tricolor, e foi homenageado pela diretoria com uma camisa com o número 200 estampado nas costas.

Mas por que esse Ricky em ascensão chama tanta a atenção da mídia, que se posta às portas de sua vida pessoal como um leão armagedônico e voraz? Talvez a resposta mais simples seja porque Ricky é pop. É óbvio que quem instala cortes de cabelo heterodoxos, adora roupas de grife e ensaie cantar músicas românticas sem medo de pôr-se no YouTube, deixará um cheiro de pólvora no ar. Afinal, onde você já viu torcedor de estádio que não tenha prazer (chame isso de prevenção, se quiser) em apetrechos, além de carrinhos violentos, arrotos de cerveja, porrada e indolência vitaminada (às vezes quimicamente)? Ricky vive em um mundo em que tolerância quase sempre é artigo de luxo.

O pensador marxista alemão Ernst Bloch (1885-1977) gostava de apontar o que chamava de "a contemporaneidade do não-coetâneo (em alemão, "Gleichzeitigkeit der Ungleichzeitigkeit"). Ou seja: você vive no século 21, mas pode estar dividindo o seu espaço, lado a lado, com quem ainda mantenha valores medievais. Ou simplesmente com quem ache que a ida do homem à lua não passa de uma montagem de vídeo. O jogador Richarlyson Barbosa Felisbino está à frente de seu tempo, ou numa dobra temporal. Não se importa que alguns torcedores e jornalistas esportivos, dissipadamente ainda situados entre o Homem de Java e o Cro-Magnon, exponham as suas tripas ao sol, só porque ele faz o que quer, quando quer. E como bem entender.

Trata-se de uma história de dar sova de cinto na cidadania. Nunca, na história do futebol, uma improvável combinação entre um jogador e um juiz de direito havia ido tão longe e é óbvio: e tinha de acontecer com o Ricky. Em abril de 2009 o Tribunal de Justiça Paulista manteve a pena de censura ao juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal Central de São Paulo. Em sentença, o juiz foi acusado de ter ultrapassado os limites da ética, ao fazer alusão à sexualidade de Richarlyson e negando o pedido de reparação feito pelo jogador - ofendido pela infeliz declaração de certo diretor de um clube rival a respeito de sua preferência sexual. A posição defendida na sentença judicial, relatada pelo togado, foi de que futebol "é coisa para macho", o que deixou o nosso Ricky de joelhos - e não se pode dizer que fosse uma atitude de fé genuflexa.

Fonte: Revista Rolling Stone
Por Claudio Julio Tognolli
Foto: Rui Mendes

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